segunda-feira, julho 09, 2007

Intervalo


Paulo não saberia dizer exatamente como foi. Um dia simplesmente acordou trinta anos mais velho. Seu rosto havia mudado, seu corpo e todos os objetos ao seu redor, que ou estavam completamente obsoletos ou lhe eram completamente estranhos. Estava acordado por mais de uma hora e ainda não tinha forças suficientes para sair da cama, somente olhava tudo com um misto de espanto e medo, porém de forma condescendente debaixo de seu lençol. Pensava que só poderia ser um sonho, afinal não estava em pânico, tudo lhe parecia estranhamente familiar e certo. E embora buscasse na memória historias que lhe contassem como aquilo foi acontecer, realmente só havia um grande vazio entre seus vinte e seus cinqüenta anos, porque de alguma maneira, sabia que essa era a sua idade agora, na verdade, tinha certeza.
Num ímpeto de coragem levantou-se bruscamente da cama, teria caído no chão se não fosse uma poltrona para aparar sua queda e começou a andar pelo quarto, como quem parte para uma grande aventura sem volta. Examinava cada centímetro do recinto e cada objeto com um cuidado absurdo, receando perder algum mínimo detalhe importantíssimo. Depois de gastar mais algumas horas observando tudo, temendo barulhos que aparelhos eletrônicos faziam aleatoriamente, seu estomago roncou e assim, como que por mágica, esse chamado da natureza fez esvair-se todo o medo que lhe assombrava o espírito e dirigiu-se à cozinha, como se a conhecesse intimamente por todos esses trinta anos e calmamente preparou um sanduíche. Enquanto comia ficou pensando nas suas ultimas lembranças, os dias que seguiram-se ao seu aniversario de vinte anos. Lembrou-se de como amaldiçoara seu destino, dizendo que podiam passar-se trinta anos sem que nada de novo acontecesse, afinal a vida seria mesmo um longo martírio monótono. E assim passaram-se mais alguns minutos em que sua mente ficou completamente vazia, concentrada apenas no sanduíche que comia e no cenário estranhamente familiar a sua volta.
Enquanto observava tudo notou um álbum de fotos em cima de um móvel e foi correndo pega-lo. Sentou-se no chão e passou o resto do dia imerso naquela documentação ilustrada da sua vida. Com algum esforço conseguiu montar uma historia. Descobriu que se formara não em jornalismo, que era o que queria, mas em direito, provavelmente porque era isso que seu pai queria. Terminou com a menina que namorava e até mesmo pensava em casar e teve varias outras, presentes em fotografias por um período de no máximo três anos – sabia disso porque tinha um hábito, que agora se mostrava útil, de anotar as datas das fotografias atrás das mesmas. Apesar de ter dado pra descobrir muita coisa sobre si mesmo, algumas coisas não são passadas através de fotos ou mesmo de diários, se ele tivesse um.
Paulo não sabia se havia sido feliz, triste, frustrado, não fazia idéia de nada, da sensação de cada experiência, tudo agora estava reduzido a algumas fotografias e uma historia montada – uma historia que deveria ter sido vivida. Um sentimento angustiante começava a lhe apertar o peito quando se lembrou da convicção com que achava que a vida era um peso constante e quase ficou aliviado ao pensar que se o fosse, então realmente se livrara de muita coisa ao pular tanto tempo. Estava quase acreditando em si mesmo quando começou a chorar compulsivamente e não sabia se era por culpa ou medo. Acordou deitado em meio às fotografias e sentiu-se bem por um breve momento, até se recordar do que aconteceu. Desde que se lembrava, esta era sua sensação preferida, a de estar quase dormindo, quase acordado, quando nada importa, nada é nem ao menos completamente real. Mas este momento acabava de passar, e ele tinha que se levantar e agüentar o peso de sua existência. Dos cacos de seu passado e os planos para o futuro.

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