segunda-feira, maio 14, 2007

Terrível despedida


Quando eu era criança, como todo mundo, adorava brincar. Aliás, quando somos crianças acho que toda a nossa vida se resume a isso. Nosso mundo vai até o parque que conhecemos ou até a casa do primo mais distante, onde em alguns domingos, vamos brincar. Eu nunca tive um quintal ou um playground para minhas brincadeiras e joguinhos, mas ainda sou da época que se podia brincar tranquilamente pelas ruas, e assim o fazia. Lembro-me de nas férias ficar até meia noite com meus coleguinhas brincando de qualquer coisa, e se vocês se lembram, quando se é criança ficar acordado até meia noite é algo fantástico, o tipo do privilégio que só os adultos tem. Nem preciso dizer que eu adorava esses dias de férias. Porém num dos meus dias de férias não havia ninguém pra brincar comigo, ou ao menos não naquele momento pois ainda era manhã e eu resolvi brincar em casa sozinha. Não me lembro exatamente do que eu brincava, só me lembro que ocasionalmente tinha que correr pela sala procurando partes do meu brinquedo. Obviamente minha mãe gritava pra eu parar de correr, dizendo que poderia me machucar, ou pior, quebrar alguma coisa dela ( eu sempre achei que ela tinha que rever a prioridade nessa questão, mas ela achava que isso já estava resolvido). Numa dessas corridas pela sala eu quase derrubei um prato que ficava na parede – coisa que eu sempre achei muito estranha por sinal, porque pra mim prato e parede não combinavam, muito menos como adorno – e a minha mãe gritou furiosamente comigo, me dizendo para ter cuidado com aqueles pratos e coisas sem sentido que “enfeitavam” as paredes. Eu ajeitei o prato, pedi desculpas e prossegui. Continuei brincando, correndo e tentando ter cuidado com a casa. Horas depois da minha brincadeira solitária alguém me chamou pra brincar fora de casa e no desespero de descer logo para brincar com outra criança eu passei correndo novamente pela sala, totalmente desesperada, como é sabido que toda criança se move, mas dessa vez eu sem intenção alguma de fazê-lo, quebrei o prato da parede. Me lembro de ver o tal prato, branco com pequenas flores amarelas, provavelmente pintadas a mão, cair da parede como se estivesse em câmera lenta. Óbvio que na vida real ele se movia rápido demais pra eu pegar e se espatifou no chão. Eu fiquei chocada olhando pra ele, sentindo um misto de medo com culpa, pois sabia que a bronca era certa, só temia suas proporções. Quando minha mãe ouviu o barulho do prato quebrando ela veio na hora, me deu a pior bronca que eu poderia levar, claro, aos berros. E quando ia me dizer qual seria o meu castigo, parou, ponderou e simplesmente não disse nada, só saiu da sala. Eu fiquei sem entender nada, mas não ousei me mexer, fiquei pacientemente esperando a minha punição, pois nem a minha fértil imaginação de criança conseguiria conceber o fato de sair daquela situação impunemente. Eis que minha digníssima mãe voltou e tinha uma sacola plástica amarelo berrante nas mãos. Olhou pra minha cara serenamente e disse: - Eu passei muito tempo te avisando, você não me obedeceu, agora arrume suas coisas. Ela não precisou dizer mais nada, eu sabia exatamente do que ela estava falando. O orfanato. Ela sempre dizia que se eu não me comportasse era pra lá que eu ia, e sempre que fazia alguma coisa de errado, ela ameaçava me mandar pra lá. Num mês de junho qualquer – sei que era junho porque fomos à uma festa junina – ela me levou de fato ao orfanato, na verdade, numa festa no orfanato e me mostrou tudo por lá: as camas, o parquinho, a escola, e me falou exatamente como a minha vida seria se ela me internasse lá. Acordar cedo, colocar uniforme, ir pra escola, almoçar o que colocassem no meu prato e daí pra pior...Enfim, o meu dia havia chegado, e tudo por causa daquele maldito prato. Claro que não simplesmente aceitei isso. Comecei a chorar compulsivamente e implorar para não ser lavada pra lá, fiz todas as promessas de bom comportamento que nem uma criança da realeza poderia cumprir. Mas de nada adiantou, minha mãe estava irredutível, eu realmente iria pro orfanato. Ela me deu vinte minutos para arrumar as minhas coisas e me mandou levar o mínimo possível, afinal, eu não poderia ficar com muito mesmo. Eu peguei apenas as minhas roupas preferidas – que segundo me lembrava do “tour” pelo orfanato – poderia usar aos domingos. Chorava a ponto de não conseguir respirar direito. Até hoje me lembro do quanto olhei pro meu quarto, pois sabia que era a ultima vez, e do quanto abracei com o coração todos os meus brinquedos e ursinhos de pelúcia. Não conseguia aceitar o fato que não veria nada novamente e meu coração doía como o coração de nenhuma criança deveria doer. Nunca esquecerei essa dor. Nunca houve nada igual a ela. Não devo ter demorado muito tempo, porque minha mãe mandava eu me apressar, mas nas minhas lembranças esse momento demorou uma eternidade, como as despedidas costumam parecer. E finalmente, com minha sacolinha amarela cheia das minhas coisas mais preciosas, eu sai do quarto. Tristemente avisei à minha mãe que estava pronta. Olhei pra trás só uma ultima vez e fechei a porta do quarto. Respirei fundo e esperei que ela me levasse embora. Ela, que esteve esse tempo todo me observando, ficou me olhando por algum tempo com um olhar grave, quando finalmente disse que já estava muito tarde e que não iria mais me levar naquele dia, somente no próximo. No dia seguinte ela fingiu esquecer de me levar embora e eu não ousei mencionar o assunto. Alias, não ousei mencionar o assunto por anos. Não saberia dizer por quanto tempo vivi sob o medo de ser levada embora e a sensação de não poder me apegar, para não ter que passar por outra despedida. Até hoje acordo em algumas noites tendo pesadelos com essa cena...queria saber apagar esse tipo de coisa da memória.

4 comentários:

Unknown disse...

Ihh trauma de infancia?
Chóra criança :P

Anônimo disse...

Adultos são realmente cegos, surdos e mudos, comparados a uma criança não é não? Se ao menos eles soubessem o valor da infancia que não lembram mais, dos sentimentos mais sinceros que de todo o tempo no futuro passarão a ser sentidos raramente... Das coisas essenciais que alguns nunca mais se lembram. Eles precisam de lembrar de como eram os pequenos, e não os pequenos de como eles se tornaram... É por isso que pra uma criança adulto é um bicho muito estranho mesmo, e estão certas, ficamos mais e mais estranhos com o passar dos anos. Se formos entregando oi melhor de nós, claro.

Anônimo disse...

Mas como esquecer não é possível, tente não viver isso "over and over again" ok?

hugs bud

Anônimo disse...

Já percebeu que com o passar do tempo algumas coisas que antes foram tão terríveis hoje em dia são até engraçadas rs? Sua mãe não tinha noção alguma do que estava fazendo, sei que não, e as vezes crianças precisam passar por momentos mais rígidos... isso é natural, mas enfim, como as coisas mudam rs...

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